terça-feira, 28 de setembro de 2010


Ele é o que chega devagar.
E ainda que chegue devagar, e ainda que venha lentamente, é capaz de inundar todo o espaço do oceano antes que se note sua presença.
Estava lá, mesmo nunca tendo estado, e, apesar de não existir, estivera sempre à espreita. Esperava a hora certa e o bote foi certeiro.
Conseguiu o que jamais conseguiria.
E teve a certeza que aquilo era tudo, sem que percebesse que na verdade era nada.
Dentro de toda a imensidão que o nada é, dentro de toda a infinidade do absoluto. Nada é mais infinito, nada é mais irrestrito.
E por não ser nada o desfez.
Porque apesar de tudo, ele era alguma coisa. Ele era qualquer coisa.
Agora não se cabe onde existia e se alimenta do que o consome.
Sua permanência é baseada no inconstante, na regularidade da água.
Agora tem as cores de uma primavera – invernal.
É o que não era, sem jamais ter deixado de ser.
Assim, indefinida, a redundância é natural.
E respira com certa dificuldade, já que o nada não permite nem o ar.
Tirania.
Porque o tudo comporta qualquer coisa, porém, o nada não comporta coisa alguma.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Casualmente encontraram-se. Olharam-se pela primeira vez com um olhar de olhar o amor, mas cuidaram para que não deixassem vestígios.
Na memória não havia registro, mas eles sabiam que não eram estranhos.
Inexplicavelmente ele já sabia como era o movimento dos cabelos dela, seu jeito de caminhar e o seu olhar furtivo de quem luta para não revelar o que sente. Ela já sentira o sorriso dele, seu jeito de dizer coisas sem sentido e a forma como ficava ao ser aplaudido.
Se desejavam de forma irrevelável e sequer poderiam saber que um era parte integrante do outro.
O olhar dela, desta vez, não conseguiu dissimular. Ele a recebeu com alegria e fez questão da sua presença. Ela aconchegou-o em seu peito.
Eles já se conheciam, de forma tão insana e inaceitavelmente profunda que não poderiam ter consciência.
Estavam espiritualmente ligados numa conexão perfeita. Era como se fizessem parte de uma rede em que os fios entrelaçados se perdiam sem começo nem fim em meio ao todo.
Entretanto - e sempre há um entretanto -, na medida em que emergia o sentir tiveram dúvidas. Ao se pegarem sentindo aquela imensidão foram presenteados com o medo. Sentimento de Troia. Tal qual o lendário cavalo, faz-nos acreditar na rendição do inimigo, mas traz consigo um exército capaz de travar o maior combate.
E pensaram nos outros.
A vida de cada um deles tinha complementos que estavam entre aquele sentimento sobrenatural.
Todo o encontro pode ter durado segundos ou horas, não saberiam dizer. Desviaram o olhar e seguiram o seu caminho. Cada um o seu.
Apesar de acompanhados, sozinhos.
E saberiam que, a partir de então, viveriam a solidão na eternidade que os separaria, até o próximo encontro, quando talvez se desprendessem das correntes e pudessem seguir juntos rumo àquilo que os guiava.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Não há mais marcas de pés na areia. As meias estão novas, o assoalho opaco.
A única sensação que está presente neste momento é a de uma confusão infinita. Interna.
Pensada e repensada e definitivamente interna.
Lá fora a frieza de uma racionalidade explícita é a única expressão de que se tem notícia.
Não há nem bem, nem mal, as entidades se distorcem refletindo uma imagem indecifrável na clareza que os olhos insistem em enxergar.
Não há nada a fazer.
Tudo já foi sentido.
Tudo já foi pensado.
Saint-exupéry que me perdoe, mas a eternidade é muito tempo.
O vazio interior é apenas a vontade de um pão-de-queijo.

domingo, 19 de setembro de 2010


Não se contam mais as horas.
O que se deseja é que elas se mantenham estáveis, assim como o tempo, assim como o clima, assim como o planeta.
E da prisão só se escapa por um instante no horizonte que é visível, mas quase irreal, porque daqui o que se vê é a liberdade, apesar das grades; o passo e o rastro de quem já se foi sem nem ter ido e de quem ainda está presente na ausência da memória; a cor do vento e do sol, o ruído do beijo, o suspiro, o lamento de uma realidade menos viva; o pingo da chuva, do cuspe e da lágrima e a água potável que derrama do copo meio cheio.
Não foram usadas cores primárias.
O meu cenário é um quadro pintado com os pés, em cinza e preto, que resplandece
rosa choque e amarelo
e verde
e amarelo
e verde e amarelo azul anil
Me diz como ficar e lutar se a chuva que vem vai alagar o coração de quem não se conforma, ou se conforma apenas com a forma - prescrita em lei?
Você não está mais aqui e eu continuo dizendo seu nome num caso, num carro, num beijo e no ar condicionado, no verão.
Pra onde vamos?
Volta,
Me pega
Me arrasta, se eu não quiser ir,
Mas me leva
E me põe no seu avião pra gente chegar antes deles em Lugar Nenhum.

sábado, 18 de setembro de 2010

Revoltava-se. Embora não fosse aquilo que deveria dizer, era o que diria.
Revoltava-se contra o que deveria dizer, contra o que queriam que dissesse e, ainda que quisesse dizer o que queriam, revoltava-se, e dizia o que não queria dizer.  
Não estava feliz. Ou padecia de uma felicidade inadaptada, inadequada. 
E quem poderia afirmar com certeza?  
Revoltava-se, porque, apesar de ver-se morta, em algum lugar pulsava a vida que lhe fugiu.  
Hoje era menos um.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ela abriu a caixa.
Ela abriu a caixa.
Era o que diziam todos eles.
Especulava-se sobre seu conteúdo, mas não havia verdade nas verdades que contavam em cada canto daquele lugar. Ela realmente abrira a caixa, mas nem ela sabia o que encontrara. Ou se encontrara. Não procurava. Ou não sabia que procurava. Talvez aquela janela teria dito, se a tivesse observado com mais cautela. E no encontro com tudo aquilo ela se perdeu.
Ao primeiro olhar era apenas mais uma caixa. Parda. Média. Nenhum interesse. Não fosse porque sentisse uma inquietude ansiosa ela não teria nem mesmo notado que estava lá. Ou notá-la seria apenas mais uma passagem na sequência do olhar abstrato.
Não sabia como e nem porque. Quando se percebeu estava a vasculhar. No meio de um novelo, sem saber de onde partiu o fio que o enrolou.
Estava automaticamente lá.
Era como um sonho, mas piscava.
E havia o cheiro...
Em meio àquelas coisas todas e sob todo o cinza - Pardo, podia garantir que era pardo. Uma cor que sendo não é. Uma definição indefinida, comparada. Demonstração de coisíssima nenhuma - em meio àquilo tudo, afastando o que lhe cegava, ela pôde ver -  uma dose, duas doses - a TV e as cartas, os jogos que tão pouco conhecia, mas que com familiaridade lhe ohavam. De dentro, foram reconhecidos, como se suas regras fossem feitas e refeitas a cada momento, por cada jogador, num aparente desentendimento que se entendia por si só, e o cheiro...
Viu também o espelho. Não lhe refletia, mas mostrava-a como bem queria. Como ele queria. Ela não se deteve. Achava que a imagem não lhe fazia jus.
O cheiro era mais evidente, mas não era sentido. Era como se pudesse reconhecê-lo onde quer que o sentisse, mas não o sentia. Só é possível descrever cheiros quando relacionados a coisas percebidas pelos outros sentidos. O olfato é um sentido lua.
Lá no fundinho um pote pequeno com a tampa quebrada. Era a essência.
Era. O vazio denunciava.
A partir daí o cheiro lhe veio como um punhal. Estivera lhe rondando e era afiado.
Doeu.
Doeu muito.
Oh, Deus! Como segurá-lo? O mais belo dos cheiros estava se esvaindo e tudo o que podia fazer era cheirá-lo o mais que pudesse.
Fechou a caixa tão bem fechada que ninguém mais a abriria. Estava lá dentro agora. E mesmo fora era lá que estaria.
E bebeu mais uma dose para não perder as memórias reais entre as verdades mentidas que contavam em cada canto daquele lugar.